terça-feira, 4 de agosto de 2009

‘Mi dá um trocado, tio!

Sempre me intrigou a ressaca do burburinho da boate da Praça Darcy Penteado a poucos passos da República, no centro de São Paulo.

Chego à banca de jornal do simpático e quase letrado Mestre Octacílio, visivelmente informado sobre todo e qualquer assunto e compartilhamos um bom bate-papo. À frente do seu “ganha-pão”, uma praça decadente de um triste jardim. Sobre a grama careca e úmida, um bando de crianças amontoadas se espreguiça, deliciosamente, na aventura de esticar os doloridos corpinhos de uma noite mal-dormida.

E a gente apressada vai aumentando a cada comentário do Mestre Octacílio acerca das manchetes dos principais diários expostos naquele mundo de conhecimento. São engravatados, a rapaziada do pileque, a moça feia da agência dos correios com seu semblante sempre cansado e destruído, os estudantes sonolentos, a rapariga sem graça com seus decotes infantis tentando mostrar atributos e delícias que a moçoila não os possui e aquele homem de meia idade, com ar de insano e feições compulsivas de uma sexualidade mal resolvida; sempre observei a sua cretinice. Desliza lentamente a mão sobre o bolso da calça de um tecido barato, retira uma moeda de baixo valor e a atira sobre os garotos que orvalham na praça. Numa satisfação quase sexual, relincha uma gargalhada quando vê os garotos se digladiarem pelo vil metal. E o homem prossegue na sua caminhada pela Rua Araújo em direção a um inferninho qualquer do Largo do Arouche.

E toda manhã a cena se repetia; os garotos renascendo sobre a grama careca e úmida. Os engravatados eternamente alinhados. A rapaziada sempre bêbada. A moça feia da agência dos correios cada vez mais destruída no semblante. Os estudantes rastejando num sono sem fim. A rapariga da nudez disfarçada, tentando sobreviver nas frias manhãs de julho. E o homem de meia-idade, insano e perturbado sexualmente na insistência de ver a luta dos meninos pelas moedas.

Essa rotina foi quebrada num quinze de dezembro de sol avassalador. Os engravatados afrouxavam o enforcamento na busca pela redenção ao afugentarem o perverso calor. A rapaziada exagerou, talvez num Martini e carregava, aos solavancos, o mais fraco da turma. A moça feia da agência dos correios continuava feia, mas o semblante estava melhor ao ser puxada pela mão por um desfigurado namorado que seduzira no dia de finados. Os estudantes profetizavam em seu sono as dificuldades de uma maldita prova final. A rapariga sem graça convertera-se ao neopentecostalismo e trajava uma indumentária típica.

E o homem de meia idade – coitada da sua insanidade – deslizou a mão por entre o bolso e, mesmo antes que arrancasse uma moedinha ordinária, os garotos o cercaram e lhe entregaram um embrulho. Com um sorriso enfermo, o sujeito apanhou o pacote envolto a um jornal e estagnado ficou. Rasgou o embrulho fazendo uma bolinha e o atirou próximo aos meus sapatos precariamente engraxados. Um dos garotos fitou-lhe os olhos e disse com voz convincente: - O senhor deve estar ficando pobre, né tio! Nós juntamos aquelas moedinhas que o senhor “perdia” todos os dias e decidimos te comprar um presente de natal.

O homem apanhou a carteira de couro que acabara de receber e desconsertado saiu lentamente se perdendo por entre os apressados. Avistei a bela moleca que incomoda o meu sono de menino e parti para a universidade caminhando apressadamente pela Avenida Ipiranga com a segunda declinação latina na cabeça e o peso de duas marmitas em minha inseparável bolsa negra.

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