terça-feira, 4 de agosto de 2009

Salvo pelo neruda

Numa terça-feira de 1989 recordo, nitidamente, que acordei às 2h com mais uma daquelas insônias teimosas.

Se bem que sempre gostava da falta do sono; ela me propiciava deselegantes leituras atrasadas. Tinha por hábito (desde pequenino) separar artigos secundários ou menos agradáveis, dos jornais e revistas que, obrigatoriamente, tinha de ler na enfadonha profissão de “teatralizar” os engodos do cotidiano e, com atrevimento, deflagrar e seduzir a atenção do leitor daquele minúsculo jornal comunitário com algum texto inusitado e interessante.

Mas o que encontrei foi um emaranhado de recortes que dormiam naquela famosa pasta roxa que guardava na minúscula escrivaninha velha.

Daquela vez mudei o ritual na escolha do assunto. Ao invés selecionar um fato, um acontecimento verossímil ou analisar, poeticamente, a escapadela extraconjugal que o vereador do bairro, daquele tradicional e famoso partido de direita, deu com o seu assessor, resolvi atirar para o teto toda aquela papelada e, como fazem os sorteios da televisão, peguei um recorte.

Assunto definido. Minha crônica deveria ser inspirada na notícia de que o corpo de um mendigo foi encontrado, por uma dona de casa às margens do córrego da Gamelinha, na periferia de São Paulo.

Apressei-me em ler, cuidadosamente, todas as informações sobre as circunstâncias do ocorrido. A visão da polícia que confrontava com a da dona de casa, que confrontava com a de uma moradora da favela da Abadiana, que confrontava com o editorial do jornal e que, por fim, confrontava com a opinião pública da época. (opinião pública?).

Comecei a visualizar, cinematograficamente, um aspecto peculiar que, porventura, não tivesse sido abordado na ocorrência. Não havia resquício de informação qualquer de que o mendigo encontrado morto poderia ter cometido um suicídio. E se o pobre senhor, mesmo sem saber nadar, resolveu dar um mergulho no córrego e teve o infortúnio de prender o pé esquerdo em um pneu de fusca submerso, afinal, as noites paulistanas daquele outono tinham se transformado numa sauna a céu aberto.
Eram questões que centrifugavam as minhas idéias. Não conseguia inspiração para escrever sobre o fato.

Não me contentando com as informações, revirei a papelada e encontrei a mesma notícia em diferentes recortes e um editorial, tendencioso, de um grande diário, de três dias após a veiculação de tal notícia.

Mas o excesso de informação não me ajudara em nada. O que escrever sobre o tal homem encontrado morto? Precisava de uma luz. Um detalhe, a minha conta de energia não tinha sido paga e minhas leituras notívagas eram recheadas à luz de velas.

Foram horas e horas sobre aquela antiga Olivetti e nada de crônica. Até que às 6h resolvi separar o poema “Cien Sonetos de Amor”, do Neruda e colocá-lo no espaço reservado a minha crônica no Talarico News.

‘Mi dá um trocado, tio!

Sempre me intrigou a ressaca do burburinho da boate da Praça Darcy Penteado a poucos passos da República, no centro de São Paulo.

Chego à banca de jornal do simpático e quase letrado Mestre Octacílio, visivelmente informado sobre todo e qualquer assunto e compartilhamos um bom bate-papo. À frente do seu “ganha-pão”, uma praça decadente de um triste jardim. Sobre a grama careca e úmida, um bando de crianças amontoadas se espreguiça, deliciosamente, na aventura de esticar os doloridos corpinhos de uma noite mal-dormida.

E a gente apressada vai aumentando a cada comentário do Mestre Octacílio acerca das manchetes dos principais diários expostos naquele mundo de conhecimento. São engravatados, a rapaziada do pileque, a moça feia da agência dos correios com seu semblante sempre cansado e destruído, os estudantes sonolentos, a rapariga sem graça com seus decotes infantis tentando mostrar atributos e delícias que a moçoila não os possui e aquele homem de meia idade, com ar de insano e feições compulsivas de uma sexualidade mal resolvida; sempre observei a sua cretinice. Desliza lentamente a mão sobre o bolso da calça de um tecido barato, retira uma moeda de baixo valor e a atira sobre os garotos que orvalham na praça. Numa satisfação quase sexual, relincha uma gargalhada quando vê os garotos se digladiarem pelo vil metal. E o homem prossegue na sua caminhada pela Rua Araújo em direção a um inferninho qualquer do Largo do Arouche.

E toda manhã a cena se repetia; os garotos renascendo sobre a grama careca e úmida. Os engravatados eternamente alinhados. A rapaziada sempre bêbada. A moça feia da agência dos correios cada vez mais destruída no semblante. Os estudantes rastejando num sono sem fim. A rapariga da nudez disfarçada, tentando sobreviver nas frias manhãs de julho. E o homem de meia-idade, insano e perturbado sexualmente na insistência de ver a luta dos meninos pelas moedas.

Essa rotina foi quebrada num quinze de dezembro de sol avassalador. Os engravatados afrouxavam o enforcamento na busca pela redenção ao afugentarem o perverso calor. A rapaziada exagerou, talvez num Martini e carregava, aos solavancos, o mais fraco da turma. A moça feia da agência dos correios continuava feia, mas o semblante estava melhor ao ser puxada pela mão por um desfigurado namorado que seduzira no dia de finados. Os estudantes profetizavam em seu sono as dificuldades de uma maldita prova final. A rapariga sem graça convertera-se ao neopentecostalismo e trajava uma indumentária típica.

E o homem de meia idade – coitada da sua insanidade – deslizou a mão por entre o bolso e, mesmo antes que arrancasse uma moedinha ordinária, os garotos o cercaram e lhe entregaram um embrulho. Com um sorriso enfermo, o sujeito apanhou o pacote envolto a um jornal e estagnado ficou. Rasgou o embrulho fazendo uma bolinha e o atirou próximo aos meus sapatos precariamente engraxados. Um dos garotos fitou-lhe os olhos e disse com voz convincente: - O senhor deve estar ficando pobre, né tio! Nós juntamos aquelas moedinhas que o senhor “perdia” todos os dias e decidimos te comprar um presente de natal.

O homem apanhou a carteira de couro que acabara de receber e desconsertado saiu lentamente se perdendo por entre os apressados. Avistei a bela moleca que incomoda o meu sono de menino e parti para a universidade caminhando apressadamente pela Avenida Ipiranga com a segunda declinação latina na cabeça e o peso de duas marmitas em minha inseparável bolsa negra.

VIVA! O presidente Morreu!

As notícias de comoção social, que extrapolam e dominam o consciente coletivo, sempre me interessaram. Lágrimas de anônimos sobre os túmulos de personalidades; coroas de flores jogadas a esmo; desfile em carro aberto dos bombeiros (que espetáculo!); entrevistas com parentes pobres e distantes e aquele bando de curiosos em volta do caixão; quem não se comove?

Remeto a minha lembrança a 21 de abril de 1985 quando o então, vencedor das eleições presidenciais, Tancredo Neves, morreu.

A notícia precedeu os afazeres do “Lar 6”, às 5 da manhã. Estávamos arrumando as dezenas de camas quando o Seu Ademir, com seu inseparável porrete de cabo de enxada, anunciou em bom tom que, naquele dia, as atividades estavam canceladas. – “O presidente morreu!” – bradou o velho carrasco com sua voz “vampiresca”.

Luto oficial na nação! Nada de enxadas; nada de colheita no milharal; nada de estábulo, galinheiro, pocilga; nada de pomar; nada de limpeza no salão; nada de nada e sem nada pra fazer.

Alegria total. Afinal, não é todo dia que morre um presidente da república! Até então, foram semanas e mais semanas no humilhante trabalho na lavoura. Merecíamos o “dia do nada”.

Enfileirados, partimos do “danitório” (era dormitório que o Xexéu queria dizer) e dirigimos ao refeitório (refeitório o Xexéu falava direitinho). Momento raro: a televisão ligada às 5 e meia da manhã. O dia inteiro ali, na frente da telinha acompanhando o qüiproquó do enterro presidencial. Manhã inteira; bunda quadrada – o banco era desconfortável; almoço: jatobás (o cozinheiro também ficou em casa acompanhando o enterro); à tarde, mais televisão, mais bunda quadrada e mais jatobás no jantar.

Aquele, sim, foi um dia ímpar. Na hora de dormir, vislumbrados pelo enterro, muitos internos ficaram com medo do fantasma do presidente. Luzes apagadas; vigilante como cão de guarda pra lá e pra cá; pra lá e pra cá; e o meu sono vindo devagarzinho. Feliz dormiria, naquele dia, com o grande sonho de ver outro presidente morto na próxima semana.

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OBS: Na Unidade Educacional U.E. 4, da Febem, os pavilhões recebiam a denominação de “lar”. A U. E. 4, no complexo de Batatais, os “lares” iam do pavilhão 1 (lar 1) ao pavilhão 11 (lar 11). Texto publicado originalmente no livro Guerreiros Urbanos - a trajetória de um egresso da Febem e a sua escolha entre a violência e o teatro, de Asdrúbal Serrano, editora Expressão e Arte, 2007.