quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Temporariamente fora do ar

Leitores, devido às últimas chuvas, este blog está temporariamente fora do ar. Em breve muitas novidades.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Lina da “receita”

O telefone toca. Um funcionário da repartição atende.
- A dona Dilma está?
- Quem está falando?
- Diga que é a Lina da “receita”, ela já me conhece.
- É pra senhora... É a Lina da Receita, parece que é urgente. - entrega o telefone para Dilma.
- Alô! O que foi agora? – ecoou a voz altiva de Dilma.
- É sobre o nosso encontro?
- Que encontro minha filha... Eu já disse que nunca nos encontramos.
- Como assim, dona Dilma?
- E já pedi para não ligar. Se me colocam um grampo as coisas pioram...
- Que grampo?
- Grampo, minha filha... Grampo!
- Mas não trabalho mais na papelaria...
- Esquece que eu existo e vê se não liga mais.
- Mas o que faço com a encomenda? Preparei direitinho conforme o seu pedido naquele nosso encontro.
- Encontro? Não houve nenhum encontro! – esbravejando.
- Olha aqui minha senhora, alguém vai ter que pagar! Posso falar com o seu chefe?
- Eu acho que a senhora não entendeu. Nós nunca nos encontramos, não existe nenhum pedido. Agora você vai desligar este telefone e me deixar em paz.
- Senhora, a receita do fitoterápico que a senhora encomendou naquele nosso encontro na farmácia custou mais de R$ 100. Ou a senhora paga esta conta ou vou ter de falar com o seu chefe.
- Fitoterápico? Espera só um pouquinho... Quem é que está falando?
- Valdelina, a Lina da receita de remédio que a senhora encomendou na FarmaPac...
- Que susto minha filha. Pode subir. Ah! Registra o seu nome inteiro na portaria, nada de apelidos. – desliga aliviada o telefone.

Cartão vermelho

Apressadamente, Eduardo entrou numa papelaria.
- Por favor, preciso de um papel-cartão vermelho – bradou um Eduardo ofegante.
- Pode ser amarelo?
- Não! Preciso mesmo é de um vermelho.
- Este laranja escuro se aproxima do vermelho.
- Acho que a senhora não me entendeu. Preciso de um papel-cartão vermelho.
- Temos todas as cores, mas o vermelho acabou.
- Tem algum outro tipo de papel com boa espessura e que seja vermelho?
- Mas que tamanho?
- Assim... - Eduardo “desenhou” com as mãos o tamanho.
A robusta senhora caminhou lentamente arrastando a chinela. Retirou um mostruário de uma pasta vermelha e retornou deliciosamente ao balcão.
- Serve um roxo clarinho? Este aqui se aproxima muito do vermelho.
- Não! Preciso mesmo do vermelho. Cartolina vermelha tem?
- Não.
Desapontado, Eduardo se retirou cabisbaixo da papelaria e caminhou contando os passos. Parou num fast food, pediu um daqueles lanches gigantes. Separou o pepino para comer por último e devorou fervorosamente o hambúrguer enquanto sorvia um refrigerante tamanho família. Deu um discreto arrotinho e recortou a parte vermelha da caixinha que acomodava o lanche. Retirou-se sorridente da lanchonete e deu longos passos até chegar à tribuna. Fez um discurso inflamado e, inesperadamente como se fosse um juiz de futebol, mostrou o cartão vermelho recortado de uma caixinha de hambúrguer.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Salvo pelo neruda

Numa terça-feira de 1989 recordo, nitidamente, que acordei às 2h com mais uma daquelas insônias teimosas.

Se bem que sempre gostava da falta do sono; ela me propiciava deselegantes leituras atrasadas. Tinha por hábito (desde pequenino) separar artigos secundários ou menos agradáveis, dos jornais e revistas que, obrigatoriamente, tinha de ler na enfadonha profissão de “teatralizar” os engodos do cotidiano e, com atrevimento, deflagrar e seduzir a atenção do leitor daquele minúsculo jornal comunitário com algum texto inusitado e interessante.

Mas o que encontrei foi um emaranhado de recortes que dormiam naquela famosa pasta roxa que guardava na minúscula escrivaninha velha.

Daquela vez mudei o ritual na escolha do assunto. Ao invés selecionar um fato, um acontecimento verossímil ou analisar, poeticamente, a escapadela extraconjugal que o vereador do bairro, daquele tradicional e famoso partido de direita, deu com o seu assessor, resolvi atirar para o teto toda aquela papelada e, como fazem os sorteios da televisão, peguei um recorte.

Assunto definido. Minha crônica deveria ser inspirada na notícia de que o corpo de um mendigo foi encontrado, por uma dona de casa às margens do córrego da Gamelinha, na periferia de São Paulo.

Apressei-me em ler, cuidadosamente, todas as informações sobre as circunstâncias do ocorrido. A visão da polícia que confrontava com a da dona de casa, que confrontava com a de uma moradora da favela da Abadiana, que confrontava com o editorial do jornal e que, por fim, confrontava com a opinião pública da época. (opinião pública?).

Comecei a visualizar, cinematograficamente, um aspecto peculiar que, porventura, não tivesse sido abordado na ocorrência. Não havia resquício de informação qualquer de que o mendigo encontrado morto poderia ter cometido um suicídio. E se o pobre senhor, mesmo sem saber nadar, resolveu dar um mergulho no córrego e teve o infortúnio de prender o pé esquerdo em um pneu de fusca submerso, afinal, as noites paulistanas daquele outono tinham se transformado numa sauna a céu aberto.
Eram questões que centrifugavam as minhas idéias. Não conseguia inspiração para escrever sobre o fato.

Não me contentando com as informações, revirei a papelada e encontrei a mesma notícia em diferentes recortes e um editorial, tendencioso, de um grande diário, de três dias após a veiculação de tal notícia.

Mas o excesso de informação não me ajudara em nada. O que escrever sobre o tal homem encontrado morto? Precisava de uma luz. Um detalhe, a minha conta de energia não tinha sido paga e minhas leituras notívagas eram recheadas à luz de velas.

Foram horas e horas sobre aquela antiga Olivetti e nada de crônica. Até que às 6h resolvi separar o poema “Cien Sonetos de Amor”, do Neruda e colocá-lo no espaço reservado a minha crônica no Talarico News.

‘Mi dá um trocado, tio!

Sempre me intrigou a ressaca do burburinho da boate da Praça Darcy Penteado a poucos passos da República, no centro de São Paulo.

Chego à banca de jornal do simpático e quase letrado Mestre Octacílio, visivelmente informado sobre todo e qualquer assunto e compartilhamos um bom bate-papo. À frente do seu “ganha-pão”, uma praça decadente de um triste jardim. Sobre a grama careca e úmida, um bando de crianças amontoadas se espreguiça, deliciosamente, na aventura de esticar os doloridos corpinhos de uma noite mal-dormida.

E a gente apressada vai aumentando a cada comentário do Mestre Octacílio acerca das manchetes dos principais diários expostos naquele mundo de conhecimento. São engravatados, a rapaziada do pileque, a moça feia da agência dos correios com seu semblante sempre cansado e destruído, os estudantes sonolentos, a rapariga sem graça com seus decotes infantis tentando mostrar atributos e delícias que a moçoila não os possui e aquele homem de meia idade, com ar de insano e feições compulsivas de uma sexualidade mal resolvida; sempre observei a sua cretinice. Desliza lentamente a mão sobre o bolso da calça de um tecido barato, retira uma moeda de baixo valor e a atira sobre os garotos que orvalham na praça. Numa satisfação quase sexual, relincha uma gargalhada quando vê os garotos se digladiarem pelo vil metal. E o homem prossegue na sua caminhada pela Rua Araújo em direção a um inferninho qualquer do Largo do Arouche.

E toda manhã a cena se repetia; os garotos renascendo sobre a grama careca e úmida. Os engravatados eternamente alinhados. A rapaziada sempre bêbada. A moça feia da agência dos correios cada vez mais destruída no semblante. Os estudantes rastejando num sono sem fim. A rapariga da nudez disfarçada, tentando sobreviver nas frias manhãs de julho. E o homem de meia-idade, insano e perturbado sexualmente na insistência de ver a luta dos meninos pelas moedas.

Essa rotina foi quebrada num quinze de dezembro de sol avassalador. Os engravatados afrouxavam o enforcamento na busca pela redenção ao afugentarem o perverso calor. A rapaziada exagerou, talvez num Martini e carregava, aos solavancos, o mais fraco da turma. A moça feia da agência dos correios continuava feia, mas o semblante estava melhor ao ser puxada pela mão por um desfigurado namorado que seduzira no dia de finados. Os estudantes profetizavam em seu sono as dificuldades de uma maldita prova final. A rapariga sem graça convertera-se ao neopentecostalismo e trajava uma indumentária típica.

E o homem de meia idade – coitada da sua insanidade – deslizou a mão por entre o bolso e, mesmo antes que arrancasse uma moedinha ordinária, os garotos o cercaram e lhe entregaram um embrulho. Com um sorriso enfermo, o sujeito apanhou o pacote envolto a um jornal e estagnado ficou. Rasgou o embrulho fazendo uma bolinha e o atirou próximo aos meus sapatos precariamente engraxados. Um dos garotos fitou-lhe os olhos e disse com voz convincente: - O senhor deve estar ficando pobre, né tio! Nós juntamos aquelas moedinhas que o senhor “perdia” todos os dias e decidimos te comprar um presente de natal.

O homem apanhou a carteira de couro que acabara de receber e desconsertado saiu lentamente se perdendo por entre os apressados. Avistei a bela moleca que incomoda o meu sono de menino e parti para a universidade caminhando apressadamente pela Avenida Ipiranga com a segunda declinação latina na cabeça e o peso de duas marmitas em minha inseparável bolsa negra.

VIVA! O presidente Morreu!

As notícias de comoção social, que extrapolam e dominam o consciente coletivo, sempre me interessaram. Lágrimas de anônimos sobre os túmulos de personalidades; coroas de flores jogadas a esmo; desfile em carro aberto dos bombeiros (que espetáculo!); entrevistas com parentes pobres e distantes e aquele bando de curiosos em volta do caixão; quem não se comove?

Remeto a minha lembrança a 21 de abril de 1985 quando o então, vencedor das eleições presidenciais, Tancredo Neves, morreu.

A notícia precedeu os afazeres do “Lar 6”, às 5 da manhã. Estávamos arrumando as dezenas de camas quando o Seu Ademir, com seu inseparável porrete de cabo de enxada, anunciou em bom tom que, naquele dia, as atividades estavam canceladas. – “O presidente morreu!” – bradou o velho carrasco com sua voz “vampiresca”.

Luto oficial na nação! Nada de enxadas; nada de colheita no milharal; nada de estábulo, galinheiro, pocilga; nada de pomar; nada de limpeza no salão; nada de nada e sem nada pra fazer.

Alegria total. Afinal, não é todo dia que morre um presidente da república! Até então, foram semanas e mais semanas no humilhante trabalho na lavoura. Merecíamos o “dia do nada”.

Enfileirados, partimos do “danitório” (era dormitório que o Xexéu queria dizer) e dirigimos ao refeitório (refeitório o Xexéu falava direitinho). Momento raro: a televisão ligada às 5 e meia da manhã. O dia inteiro ali, na frente da telinha acompanhando o qüiproquó do enterro presidencial. Manhã inteira; bunda quadrada – o banco era desconfortável; almoço: jatobás (o cozinheiro também ficou em casa acompanhando o enterro); à tarde, mais televisão, mais bunda quadrada e mais jatobás no jantar.

Aquele, sim, foi um dia ímpar. Na hora de dormir, vislumbrados pelo enterro, muitos internos ficaram com medo do fantasma do presidente. Luzes apagadas; vigilante como cão de guarda pra lá e pra cá; pra lá e pra cá; e o meu sono vindo devagarzinho. Feliz dormiria, naquele dia, com o grande sonho de ver outro presidente morto na próxima semana.

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OBS: Na Unidade Educacional U.E. 4, da Febem, os pavilhões recebiam a denominação de “lar”. A U. E. 4, no complexo de Batatais, os “lares” iam do pavilhão 1 (lar 1) ao pavilhão 11 (lar 11). Texto publicado originalmente no livro Guerreiros Urbanos - a trajetória de um egresso da Febem e a sua escolha entre a violência e o teatro, de Asdrúbal Serrano, editora Expressão e Arte, 2007.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Perifa: preconceito e exclusão na metrópole

Cena Única
...
O escritório de uma empresa compõe o ambiente dramático. Em cena, João Batista, um segurança negro está de braços cruzados. Entra Tonico.

TONICO – Bom dia! Tenho hora marcada com ... (apanha um papel amassado no bolso) - ... Dr. Antônio Carlos Boleros.

JOÃO BATISTA – Pela vaga de emprego?

TONICO – Serviços gerais!

JOÃO BATISTA (apontando) – Vá até o final deste corredor, vire a direita, depois à direita novamente, desça cinco lances de escada e, finalmente dobre a direita. A sala do doutor é a terceira à direita depois do extintor.

TONICO – Não seria mais fácil pegar o elevador?

O segurança não responde. Tonico dá algumas voltas pelo palco até chegar à sala do recrutador, na outra extremidade do palco. Tonico bate à porta.

ANTÔNIO – Entra!

TONICO (ofegante pelo cansaço) – Bom dia, senhor. Sou Tonico, falei com o senhor agora a pouco por telefone.

Antônio olha Tonico de cima para baixo e não responde.

ANTÔNIO – O senhor não me disse ao telefone que era ne...

TONICO – Como?

ANTÔNIO (desvencilhando-se) - Trouxe o currículo?

TONICO – Está aqui, doutor!

Antônio pega, enojado, o currículo de Tonico.

ANTÔNIO – Hum! Cidade Tiradentes.

TONICO – É um pouquinho longe, mas tenho disposição...

ANTÔNIO (com ironia) – Fundão da zona leste, abismo do medo!

TONICO – O que disse doutor?

ANTÔNIO – Aguarde um minuto, vou pedir para que sirvam-lhe um café!

Antônio se levanta, simula tomar um elevador e se dirige ao segurança João Batista.

ANTÔNIO – Como foi que você deixou aquele meliante de camisa listrada e “bombeta” entrar?

JOÃO BATISTA – Ele veio atrás do emprego.

ANTÔNIO – Além de ser pretinho, você viu como está vestido? Olha o currículo do marginal... Ele é da quebrada da Cidade Tiradentes, abismo do medo! É contratar este bandido e, na primeira semana ele arruma uns comparsas e assalta a empresa! Você sabe das orientações, não pode deixar gente suspeita entrar na empresa...

Antônio retira-se, retorna ao elevador imaginário e caminha até a sua sala.

ANTÔNIO – Serviram-lhe o café?

TONICO – Não senhor...

ANTÔNIO – Estou cercado de gente incompetente. (dobra o currículo e o devolve para Tonico) – Sr. Tonico, infelizmente a vaga já foi preenchida.

TONICO – Mas o senhor me disse no telefone das oito vagas e que eu poderia começar ainda hoje.

ANTÔNIO – Desculpe, mas eu me equivoquei...

TONICO – Eu peguei dinheiro emprestado só pra vinda. O senhor disse que hoje mesmo eu receberia o vale-transporte. Eu não tenho dinheiro pra voltar pra casa.

Antônio faz uma cara de desdém.

TONICO – O senhor pode ao menos ficar com o currículo, caso abra outra vaga.

Antônio, enojado, apanha novamente o currículo e o joga sobre a mesa. Tonico sai cabisbaixo. Apanha um telefone e disca um número.

ANTÔNIO – Alô! É da Zap - mão de obra terceirizada? Poderia falar com o senhor Pedro Martins? Pedrão! Aqui é o Antônio Carlos Boleros. Rapaz, não consigo preencher oito vagas disponíveis para o cargo de ajudante geral. Seleciona alguns candidatos e mande pra gente. Ah! Vê se nõa manda pessoas escurinhas, mal vestidas e que more nas quebradas da cidade. O máximo é uma condução que pagamos. (pausa) – Isso, salário mínimo e uma cesta básica. Está bem? Até mais.

Antônio pega o currículo, rasga-o e joga no lixo. Desce o pano.